Não Tenha Medo do
Coeficiente de Atividade

 

Wilson Salvagnini

(EPUSP-UNIP)

Introdução

Poucos assuntos causam tanta ojeriza aos alunos quanto a parte que trata dos coeficientes de atividade, apesar da sua enorme utilidade. Essa aversão provavelmente se deve ao tratamento teórico dado à energia livre de excesso, da qual o coeficiente de atividade é derivada, que não é um dos pontos mais digestivos da físico-químicos

Um jeito de não detestar e aprender os fundamentos do coeficiente de atividade é entender mais fisicamente o que é e a sua utilização; não se preocupe agora com a teoria que se refere a este coeficiente.

Misturas Binárias Ideais

A idéia de linearidade e idealidade freqüentemente estão associadas, por exemplo, para gases ideais, a pressão e o volume, quando um ou outro estiver constante, estão relacionados de uma maneira linear com a temperatura (equação de Clapeyron), que é a equação dos gases ideais.

Esta mesma idéia de relação entre idealidade e linearidade simples inspirou o químico francês François Marie Raoult (1830-1901) a estabelecer a lei que leva o seu nome. Ele tinha observado que para certas misturas de dois líqüidos miscíveis, tais como alguns hidrocarbonetos, a volatilidade de cada um não é afetada pela presença do outro componente. Em tais casos, o ponto de ebulição de uma mistura com 50% em números de mols de cada um dos componentes, por exemplo, seria no meio do intervalo compreendido entre os pontos de ebulição de cada um dos componentes puros (A ferve a 100° C e B a 80° C , a mistura meio a meio ferveria a 90° C). Se fizéssemos uma destilação simples, aquela que fazemos com o balão de destilação no laboratório de química orgânica, o grau de separação obtido seria somente dependente da pressão de vapor dos componentes puros na temperatura que trabalhamos (). Tudo isto pode ser traduzido em linguagem matemática pela seguinte relação linear:

(1)

A pressão parcial do componente A na fase vapor em equilíbrio com o líqüido PA está linearmente relacionada com a fração molar de A na fase líqüida (xA).
Sem querer fazer trocadilho, as relações lineares são "ideais" para trabalhar. O cérebro do ser humano tem uma maior facilidade para compreender os fenômenos que podem ser traduzidos por uma relação linear. É fácil de entender que dois quilos de açúcar custam o dobro de um quilo, mas se requer mais explicações porque um quilo numa tonelada de açúcar que uma empresa compra através de caminhão, dita "a granel", custa bem menos.

Repare na expressão da lei de Raoult, veja que relação interessante. A pressão parcial de A, que é um meio de expressar a concentração de A na fase vapor formada em cima da fase líqüida quando estas entram em equilíbrio, está diretamente relacionada com a fração molar do mesmo componente na fase líqüida. Ela é uma espécie de ponte que liga a composição das duas fases. Faça um exercício de interpretação, veja coma a expressão fica quando a fração molar de A é 1 e quando é 0.

Se você admitir que o vapor formado acima da superfície líqüida for um gás ideal e, também, se comportar como mistura ideal, valerá a lei de Dalton, outra relação linear entre a fração molar de A no vapor e a sua pressão parcial:

(2)

Ajunte estas duas equações e será obtida uma importante relação da termodinâmica:

(3),

que é a relação entre as frações molares das duas fases quando tudo é ideal.

Misturas Binárias Reais

Estas relações se aplicam somente para misturas de líqüidos que são muito similares na sua estrutura química tal como a mistura benzeno com tolueno. Porém a realidade mostra uma cara bem diferente; a maioria das misturas líqüidas que encontramos na prática tem um comportamento que foge muito ao ideal. Se formos ver a volatilidade do etanol numa solução aquosa diluída, observa-se o crescimento desconcertante de sua volatilidade. A volatilidade do álcool é várias vezes maior do que a predita pela lei de Raoult. É como se a volatilidade fosse "ativada".

Porque isto ocorre? Seguramente isto se deve às diferentes estruturas moleculares da água e do etanol. A água é altamente polar, tem em sua moléculas uma forte má distribuição de cargas elétricas, como pode ser observada na figura abaixo. Já o etanol, é meio indefinido, parte da molécula é polar e a outra parte pouco polar como um hidrocarboneto (os hidrocarbonetos alifáticos são exemplos de substâncias pouco polares). Enquanto parte da molécula do etanol tem grande afinidade pela água, a outra tem uma verdadeira aversão, portanto, o etanol não é muito semelhante à água. Decorre disto que a água tende a expulsar (fig. acima) o etanol da solução, por isso a sua volatilidade aumenta. Este efeito é mais pronunciado quando a solução é diluída em etanol; uma molécula de etanol está rodeada quase que somente de água, ela se torna uma espécie de estranha no ninho e a conseqüência é dramática, a tendência a ser expulsa é muito grande e então, a volatilidade cresce muito.

Estruturas da água e etanol

A união faz a força. Se na solução em etanol formos adicionando mais moléculas de etanol, elas vão se ajuntando formando "guetos" de maior concentração de etanol e começam impor na mistura um comportamento que vai se aproximando do comportamento do etanol puro; a volatilidade do etanol diminui e a da água passa a aumentar. Agora é a vez da água a estar rodeada de moléculas diferentes e "hostis".

Outra face do mesmo fenômeno que ocorre nestas misturas é o comportamento da temperatura de ebulição da mistura ou temperatura de bolha. Fixada a pressão, para uma dada composição, se a mistura etanol-água fosse ideal, entraria em ebulição em uma temperatura maior do que a temperatura de bolha da mistura real (aquela que medimos no laboratório). Isto prova que as ligações entre as moléculas na mistura se tornam mais frouxas ao ponto de tornarem mais baixas a temperatura de bolha. Em alguns casos ocorre o inverso (fenômeno mais raro), por exemplo, para a mistura água e ácido acético, as ligações entre os diferentes componentes é mais forte do que entre si quando puros. Neste caso a temperatura de bolha é maior do que seria se a mistura fosse ideal. As forças de ligação água-ácido acético são mais fortes do que as ligações água-água e mesmo ácido acético-ácido acético.

Tradução Matemática do Comportamento Real

Não sei se você já reparou, na ciência quando uma relação é cômoda para trabalhar ou mesmo é "elegante" não se joga fora mesmo que ela não esteja completamente certa. Muda-se um pouco, ajeita-se aqui, coloca-se um fator ali etc. e con-tinuamos com ela. Não dá outra, a expressão 3 é elegante, cômoda e fácil de entender portanto azeita-se, ou melhor, ajeita-se! Como? De modo clássico, coloca-se ali um coeficiente que corrige ou faça a expressão 3 ser aplicável para misturas reais.

O nome deste coeficiente é até sugestivo, veja que foi dito anteriormente, a volatilidade de um dado componente parecia ser ativada, por isso vamos chamá-lo de coeficiente de atividade (g ) de modo que a relação 3 passa a ser escrita como:

(4)

Faça outro exercício de interpretação, o que significa nesta expressão o fato de ser g igual a 1?

Obviamente o coeficiente de atividade não será uma função simples ou mesmo uma constante. Não poderia de ser complexa pois, caem sobre os seus ombros a ingente tarefa de explicar todos os fenômenos de relacionamento entre as diferentes moléculas que estão na mistura líqüida. Repare bem, ela está explicando somente o que ocorre lá no meio da mistura líqüida.

Analisando as coisas sob essa ótica podemos perceber que o coeficiente de atividade é uma forte função da composição, os "guetos" de moléculas da mesma espécie são fortemente dependentes das concentrações dos componentes na mistura líqüida, quanto maior a concentração de etanol na mistura líqüida mais etanol teremos no "gueto" com alta influência na volatilidade do etanol. Por outro lado, quanto maior a temperatura, menores costumam ser as forças intermoleculares de modo que é esperado um discreto diminuir do coeficiente de atividade com o aumento da temperatura. Quanto maior a pressão maior a temperatura de bolha; ela irá influenciar indiretamente através da sua influência na temperatura.

A figura abaixo mostra como o coeficiente de atividade varia com composição para uma dada mistura líqüida binária:

Variação do coeficiente de atividade com a concentração

Observe a forte dependência do coeficiente de atividade com a concentração. À medida que qualquer um dos dois componentes torna-se diluído o seu coeficiente cresce e portanto também a sua volatilidade. O crescimento deste coeficiente traduz a hostilidade que o meio exerce sobre o componente diluído; ele está sendo expulso da solução. Note que quando a concentração de A tende a zero o coeficiente de atividade tende ao maior valor, que corresponde ao coeficiente de atividade em diluição infinita, que traduz o fato de o componente A estar tão diluído que ao seu redor só se encontram moléculas de B, então, a sua volatilidade é o máximo possível.

A figura abaixo, ao lado mostra a situação contrária, isto é, quando as ligações entre os componentes são mais forte do que entre si quando puros. Note que neste caso, o fato físico da força destas ligações serem maiores está traduzido através de valores de g menores do que 1. Há um decréscimo da volatilidade. Costuma-se classificar este dois casos: g maiores do que 1 são chamados de sistemas que apresentam desvio positivo em relação à lei de Raoult e sistemas com g menores do que 1, desvios negativos em relação à lei de Raoult.

Variação do coeficiente de atividade com a
concentração para sistemas negativos

Podemos facilmente interpretar as interações que estão acontecendo entre os componentes do sistema somente observando os valores do coeficiente de atividade através da seguinte tabela:

g = 1 misturas ideais - harmonia entre eles, as forças de interação entre os componentes são muito semelhantes. Vale a lei de Raoult
g >1 sistema com desvio positivo, as moléculas têm estruturas diferentes, há uma tendência da molécula ser expulsa para a fase vapor, aumento da volatilidade. Vale a lei de Raoult corrigida (4) Exemplo alcool-água
g >>1 Moléculas muito diferentes, elas têm pouca afinidade entre si, pode ocorrer que sejam tão diferentes que se separam em duas fases líqüidas diferentes, que é o cúmulo da não afinidade. Ex: alcool hidrocarbonetos / buta-nol-água
g < 1 sistemas com desvio negativo, as moléculas dos diferentes componentes são muito afins umas das outras, mais do que entre elas quando puras é o caso da água com o ácido acético.
g  ¥  condição e, que uma molécula está inteiramente rodeado do moléculas diferentes. Seu valor dá preciosas informações sobre a interação entre as diferentes moléculas.

Finalmente, convém alertar que todas as considerações feitas aqui, valem para algumas condições um pouco particulares, que nem sempre n prática são encontradas. Para facilidade da análise foi considerado que a fase vapor em equilíbrio com a fase líqüida (cuidado, a aplicação do coeficiente de atividade só pode ser feita quando a mistura líqüida está em equilíbrio com o seu vapor) tem um comportamento de gás ideal (portanto aplicáveis para baixas pressões) e, também, se comporta como se fosse uma mistura ideal (não há uma interação entre os componentes, na fase gasosa, diferente daquela que teriam os componentes quando puros).

 

 Você é o leitor No.